Trabalhador doméstico caminha para superar discriminação.
A Constituição da República de 1988 incluiu, no artigo 7º, 34 direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. O parágrafo único deste artigo, porém, limitava aos trabalhadores domésticos apenas nove dos 34 direitos. Ficaram de fora, por exemplo, o FGTS, as horas extras, o adicional noturno e até mesmo a limitação da jornada às oito horas diárias e 44 semanais.
Os trabalhadores domésticos foram os únicos a manter essa condição de discriminação até os dias atuais, mesmo compondo a categoria profissional mais numerosa do país. Esse é o entendimento da ministra do Tribunal Superior do Trabalho Delaíde Miranda Arantes, para quem um dos fatores responsáveis por essa desigualdade é a permanência de resquícios escravagistas no tratamento dispensado ao trabalhador doméstico.
Mas essa realidade está com os dias contados: com a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional nº 478/2010 (PEC das Empregadas Domésticas) pela Câmara dos Deputados, em dois turnos, e pelo Senado Federal, em primeiro turno, a categoria passará a ter direito a até 17 dos 34 direitos do artigo 7º - entre eles a jornada de 44 horas semanais, FGTS e horas extras. Para sacramentar a mudança, falta ainda a apreciação e votação, pelo Senado, em segundo turno.
A ampliação desses direitos sempre gerou grande discussão, e um dos principais argumentos era o da manutenção dos empregos domésticos. Afinal, a sociedade conseguirá arcar com os custos? Haverá desemprego?
Na opinião do professor de Relações do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP) José Pastore, a extensão desses direitos criará novos problemas sem resolver um antigo e principal, que é a informalidade da maioria das empregadas domésticas. Entretanto, para Antônio Ferreira de Barros, presidente e fundador do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Distrito Federal, que representa 87 mil trabalhadores, a sanção da PEC 487 é aguardada com grande expectativa pela categoria. "A extensão desses direitos não vai gerar desemprego, muito pelo contrário: vai abrir o mercado de trabalho, pois muitos trabalhadores que estão na informalidade passarão a se interessar pela profissão", acredita.
O empregado doméstico é definido pelo parágrafo 1º da Lei nº 5.859/1972 como "aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas". São considerados empregados domésticos também o cozinheiro, governanta, babá, lavadeira, faxineiro, vigia, motorista particular, jardineiro, acompanhante de idosos e caseiro (quando o sítio ou local onde exerce sua atividade não tenha fim lucrativo).
Entre as empregadas domésticas propriamente ditas – profissionais que executam as tarefas rotineiras de uma casa – existem aquelas que vivem no local de trabalho e recebem salário mensal, além de casa e comida. Há também as que se deslocam todos os dias para a residência em que trabalham, as chamadas mensalistas, e, por fim, as diaristas, que prestam serviços em várias casas e recebem salário diário.
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos sete milhões de empregados domésticos no Brasil, apenas 26% têm carteira assinada. Também a Secretaria de Políticas para as Mulheres avalia a existência de cerca de 7,2 milhões de pessoas no serviço doméstico no Brasil. Desse total, 92% são mulheres e, destas, 60% são negras.
Histórico escravagista
A cultura do trabalho doméstico é um aspecto marcante da sociedade brasileira. A economista e professora Hildete Pereira de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em estudos de gênero, observa, no artigo "O serviço doméstico remunerado o Brasil: de criadas a trabalhadoras", que a origem do serviço doméstico no Brasil não difere muito da ocorrida nos Estados Unidos, pois, tanto aqui quanto lá, antes da abolição da escravidão, os escravos eram encarregados de realizar as tarefas do lar.
Por isso, entre outros aspectos, o trabalho doméstico no Brasil nunca foi valorizado, a remuneração nunca foi digna e sempre houve ausência do cumprimento dos direitos, sem contar a ocorrência de abuso nas relações. Matilde Ribeiro, ex-secretária especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República do governo Lula, avalia que a desvalorização tem origem no período da escravidão, que se prolongou por quase quatro séculos, no qual as mulheres negras estiveram à frente da organização de lares, alimentando filhos e famílias de escravocratas em meio à violência física e sexual.
Após a abolição da escravatura, "o trabalho doméstico representou a possibilidade de sustentabilidade das famílias negras", afirmou Matilde. Contudo, as mulheres negras continuaram subjugadas a jornadas semelhantes à escravidão, recebendo em troca alimentação e moradia, como forma de pagamento.
Convenção nº 189 da OIT
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), sempre atenta às condições de trabalho e direitos dos trabalhadores, aprovou, em junho de 2011, a Convenção Internacional do Trabalho nº 189, que assegura melhores condições de trabalho aos empregados domésticos no mundo. Primeira norma mundial dirigida aos trabalhadores domésticos, a convenção entrará em vigor em setembro de 2013, e obriga os países que a ratificarem a adotar medidas que assegurem "a promoção e a proteção efetivas dos direitos humanos de todos os trabalhadores domésticos". O Brasil, até o momento, não a ratificou, mas as perspectivas nesses sentidos são boas, pois os delegados brasileiros representantes dos trabalhadores, dos empregadores e do governo na OIT votaram pela sua aprovação.
Entre as inovações trazidas pelo documento está o estabelecimento de idade mínima para o trabalho doméstico, de acordo com as convenções associadas ao tema; a adoção de medidas efetivas que assegurem proteção efetiva contra todas as formas de abuso, assédio e violência; a disciplina da jornada de trabalho, garantindo igualdade de tratamento em relação aos demais trabalhadores; e remuneração mínima para a categoria, sem discriminação de sexo, entre outras.
Lacunas e fragilidades
Em janeiro de 2013, a OIT divulgou seu primeiro estudo sobre o trabalho doméstico no mundo, que levou em consideração três pontos fundamentais para avaliar as condições de trabalho entre esses empregados: horas trabalhadas, salários e direito à licença maternidade. A conclusão foi de que as lacunas existentes na legislação trabalhista dos países são a causa das fragilidades dessas condições.
O estudo, realizado em 117 países, verificou que 15,7 milhões de pessoas (quase 30% dos domésticos) estão totalmente excluídos de qualquer tipo de cobertura por legislação trabalhista, sendo que apenas 5,2 milhões (10%) têm acesso, atualmente, à proteção jurídica igual à dos demais. Ainda segundo o estudo, dos 52 milhões de empregados domésticos no mundo, 83% são mulheres. Outro dado relevante é que 93% desses trabalhadores no Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) são mulheres, e o Brasil é o país que mais emprega.
Os salários também foram considerados baixos: 42,5% dos trabalhadores (22,4 milhões) não recebem sequer um salário mínimo. Nesse sentido, a OIT recomendou aos governos a implementação de políticas de salário mínimo, para proteger os trabalhadores da exploração e de salários injustos. No caso das horas trabalhadas, evidenciou-se a jornada excessiva, e 45% dos empregados não têm garantido o descanso semanal.
Conquista de direitos ao longo dos anos
Criada em 1943 e regulamentada pelo Decreto Lei nº 5.452/1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que estabeleceu as normas reguladoras das relações individuais e coletivas de trabalho no Brasil, não contemplou os trabalhadores domésticos, excluindo-os completamente da aplicação dos direitos trabalhistas. O artigo 7º é taxativo ao dispor que os preceitos ali constantes não se aplicam aos empregados domésticos, "assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas".
Ao longo do tempo, porém, a situação foi mudando, embora lentamente. Somente com a Lei nº 5.859/1972, regulamentada em 1973, os trabalhadores domésticos obtiveram alguns direitos, como o registro na carteira de trabalho. Considerada a maior conquista da categoria, a assinatura da carteira possibilitou o reconhecimento da profissão e a garantia dos direitos previdenciários como salário maternidade, auxílio-doença, aposentadoria e pensão, entre outros. A lei também assegurou o direito a férias remuneradas de 20 dias úteis.
A Constituição Federal de 1988 consolidou outros direitos, como o salário mínimo, a irredutibilidade do salário, o direito ao reconhecimento dos acordos e convenções coletivas, 13º salário, repouso semanal remunerado, licença maternidade de 120 dias, licença paternidade de cinco dias, aviso prévio e aposentadoria por idade, por tempo de contribuição e por invalidez.
Outros avanços vieram com a Lei nº 11.324/2006, que estendeu aos domésticos o descanso remunerado em feriados, férias de 30 dias corridos e proibiu ao empregador descontar do salário o fornecimento de vestuário, higiene ou moradia. Essa lei também alterou a lei de 1972 para garantir a estabilidade provisória da gestante, vedando sua dispensa com ou sem justa causa até o quinto mês após o parto. Contudo, o FGTS, embora estendido à categoria por meio da Lei nº 10.208/2001, depende da vontade do empregador, ou seja, é facultativo.
Avanços na jurisprudência
Em decisão recente (de dezembro de 2012), o TST garantiu a uma empregada doméstica demitida antes de 2006 o direito à estabilidade provisória da gestante, só assegurada à categoria a partir daquele ano. A decisão, por maioria, foi da Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), que negou provimento ao recurso de embargos da empregadora e reconheceu o direito da doméstica, que será indenizada. O julgamento teve início em fevereiro de 2011, e, durante esse período, três ministros solicitaram vista para melhor examinar o recurso.
Antes da Lei nº 11.324/2006, o TST tinha decisões nos dois sentidos: alguns ministros defendiam a concessão do direito à estabilidade provisória, enquanto outros a negavam, uma vez que a Constituição não estendia aos empregados domésticos todos os direitos trabalhistas ali listados. No entanto, o parágrafo único do artigo 7º incluía o direito à licença de 120 dias da gestante, e o artigo 10, inciso II, alínea "b" do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) garante à gestante a estabilidade provisória.
Com base nesses dispositivos, a Quinta Turma do Tribunal concedeu a estabilidade, e a empregadora opôs embargos à SDI-1. O relator, ministro Horácio de Senna Pires (aposentado), defendeu a manutenção da decisão da Turma com os mesmos fundamentos. Para o magistrado, não parecia razoável que a condição de doméstica fosse obstáculo à obtenção da proteção à mãe e ao bebê conferida de modo geral pela Constituição. O objetivo da norma, segundo ele, era lhes dar "segurança material durante algum tempo, amparando-os financeiramente desde a confirmação da gravidez".
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